quinta-feira, 24 de junho de 2010

A contabilidade a valor justo e a crise financeira mundial

Entre os anos de 2008 e 2009, realizei uma pesquisa sobre o impacto da contabilidade a valor justo na crise financeira mundial. Na busca dos culpados pela crise, a contabilidade a valor justo foi colocada em cheque, não só pela subjetividade que carrega o conceito do fair value, mas também por criar um suposto “efeito espiral”.

Conversei com alguns dos maiores nomes em economia e finanças do Brasil, com o objetivo conhecer sua percepção sobre a contabilidade a valor justo e seus possíveis impactos na deflagração ou no agravamento da crise. Propositalmente, não entrevistei contadores, pois era a opinião do mercado que interessava, e esta deveria ponderar o critério contábil como um entre vários fatores, em vez de ter aquele como foco principal.

Fair value ou valor justo é um valor de saída, representado por um valor de mercado ou uma estimativa deste. Contabilizar ativos e passivos pelo valor justo significa abandonar a objetividade do custo histórico em favor de uma informação teoricamente mais relevante, porém, com maior risco de subjetividade.

Antes da crise, instituições americanas acumulavam ativos lastreados em crédito hipotecário, e por negociar ativa e frequentemente esses papéis, registrava-os contabilmente pelo valor justo. No período da crise, quando o mercado para esses ativos deixou de existir, seu preço caiu vertiginosamente, e as instituições que utilizavam o valor justo como critério contábil foram obrigadas a reconhecer grandes perdas.

O tal efeito espiral sugere que, cada vez que alguma companhia divulga o valor justo dos seus ativos, cria uma nova base de preço para negociação, fazendo com que os próximos negócios sejam realizados por preços ainda mais baixos, em períodos de crise, ou mais altos, em períodos de euforia. Assim, a contabilidade a valor justo teria um efeito pró-cíclico, não desejável.
Segundo publicações dos órgãos internacionais de normatização contábil (IASB e FASB) no final do ano de 2008, o problema não estava no conceito do fair value, mas na sua aplicação. Contabilizar os ativos desvalorizados pelo valor justo fazia sentido, porém, o valor justo em um mercado sem liquidez não deveria se basear em uma cotação, mas considerar a verdadeira expectativa do valor de liquidação desses ativos.

Os entrevistados da citada pesquisa foram quase unânimes em inocentar a contabilidade a valor justo, enfatizando, ao contrário, os benefícios de ter uma informação mais relevante.

O Professor Antônio Delfim Netto, ex-Ministro da Fazenda, acredita que “o efeito de avaliar um ativo pelo valor de mercado não teve nenhum papel relevante na deflagração ou agravamento da crise. A possibilidade de fazer operações fora do balanço, isso sim, foi um problema”.

Gustavo Loyola também não enxerga nada que aponte a contabilidade a valor justo entre os culpados pela crise. Segundo ele, “para atingir metas de inflação, os Bancos Centrais Mundiais se sentiram confortáveis em manter taxas de juros baixas, não se importando com os preços dos ativos financeiros”. De acordo com o ex-presidente do Banco Central, “esse ambiente de “fartura” leva a um comportamento menos avesso ao risco pelos agentes econômicos, isto é, esses stakeholders se tornam mais otimistas. Em tempos de exuberância, só existe memória do passado recente, e não dos tempos de maior risco, o que torna os investidores mais agressivos em termos de assunção de riscos”.

O ex-Ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, em concordância com Gustavo Franco, ex-Presidente do Banco Central do Brasil, acredita que “existia um incentivo perverso decorrente da forma de remuneração dos executivos de instituições financeiras, que eram bonificados pelo lucro das instituições, independentemente do fato de essas operações se tornarem ruinosas ou não no futuro”. Portanto, a teoria desses dois especialistas também desconsidera o fair value accounting como um dos culpados pela crise.

Outro fator-chave citado na pesquisa foi a regulamentação deficiente. De acordo com Maria Helena Santana, atual presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), “o ambiente regulatório, em direção à desregulamentação, não estava preparado para prevenir ou controlar a evolução do mercado”.

Entre os fatores considerados relevantes para a deflagração da crise mundial, encontramos aspetos relacionados ao gerenciamento de riscos e à complexidade dos instrumentos financeiros modernos. De acordo com o ex-presidente do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos, Arminio Fraga, “a administração de risco tinha se tornado, ilusoriamente, uma ciência exata, e prometia um grau de controle muito maior do que era possível na realidade”.

Assim, ficou documentada a pouca relevância do critério de avaliação contábil pelo valor justo como um dos culpados pela crise financeira mundial de 2008. Longe de ser unanimidade na classe contábil, a contabilidade a valor justo segue firme e forte, com novos esclarecimentos normativos e exigências de divulgação por parte do FASB e do IASB. No Brasil, Alexsandro Broedel Lopes, Professor da FEA-USP e Diretor da CVM, é enfático: “Para instrumentos financeiros, especialmente derivativos, não há outro critério de mensuração além do valor justo. Retornar ao custo histórico seria regredir ao tempo em que esses instrumentos ficavam fora do balanço”.

A pesquisa deu origem a um artigo científico, aprovado no Congresso USP de Contabilidade de 2010, o qual está disponível na íntegra em http://www.congressousp.fipecafi.org/artigos102010/23.pdf.

Texto de Eric Barreto, Professor de Contabilidade e Finanças e Gerente Senior da FBM Consulting.

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